Análise Crítica: Contexto contemporâneo da fala de Alexandre de Moraes
Análise Crítica: Contexto contemporâneo da fala de Alexandre de Moraes
Por: Gabriel Rodrigo Rocha @gabrielrochaadvogado
No julgamento da ADPF 635 (descriminalização do porte de drogas para uso pessoal), o ministro Alexandre de Moraes argumenta que a lei é aplicada de forma racista, classista, territorial e desigual:
“Um jovem branco, de classe média alta, abordado em um bairro nobre com cinco gramas de maconha, será enquadrado como usuário. Já um jovem negro, periférico, com a mesma quantidade, será considerado traficante” (MORAES, 2023, apud O GLOBO, 2023).
Essa fala reconhece a seletividade estrutural do sistema penal brasileiro, que não julga apenas o ato, mas quem o comete, ou melhor, de onde vem, qual é sua cor, sua classe, sua escolaridade, sua aparência.
Como essa realidade dialoga com os autores contemporâneos que teorizam criticamente a sociologia da punição?
Rusche e Kirchheimer – Punição e estrutura social
Rusche e Kirchheimer afirmam que a forma e a severidade das penas variam conforme a estrutura econômica e as necessidades de controle social do capital. A justiça penal não é neutra: ela opera como instrumento de dominação de classe, regulando quem é considerado ameaça à ordem produtiva e quem merece a proteção estatal (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004).
Aplicação seletiva da lei de drogas? Exemplo direto da tese de Rusche:
- O usuário branco e rico é “tratável”, “corrigível”, útil.
- O usuário negro e pobre é “perigoso”, “descartável”, punível.
A lei, nesse sentido, não é aplicada de forma desigual por erro, ela é desigual por design, porque responde a funções sociais distintas conforme a classe e a raça do sujeito.
Georg Rusche – Mercado de trabalho e regime de penas
Rusche mostra que quanto mais descartável for o sujeito para o mercado, mais violenta será a pena. Pessoas negras e periféricas, historicamente marginalizadas do acesso pleno ao trabalho formal e aos direitos sociais, são tratadas como excedente populacional, e, portanto, mais facilmente criminalizadas (RUSCHE, 1994).
No Brasil, o sistema penal atua como filtro social: seleciona os corpos "puníveis" pela sua condição social, e não pela gravidade da conduta. A análise de Moraes ilustra isso com precisão.
Melossi e Pavarini – Cárcere e Fábrica
Esses autores explicam que a prisão moderna nasce para disciplinar corpos para a fábrica, ou para eliminá-los, quando não servem ao processo produtivo. A criminalização do porte de drogas, quando aplicada seletivamente, funciona como instrumento de exclusão massiva de jovens pobres e negros do convívio social e dos direitos civis (MELOSSI; PAVARINI, 2010).
O encarceramento por "porte de drogas" não tem função reeducadora: ele tem função política e simbólica, serve para marcar socialmente quem é considerado incompatível com a ordem dominante.
Como essa seletividade se inscreve na história da punição no Brasil?
A fala do ministro também nos remete à história da penalidade no Brasil:
- Do Código Penal de 1890 (que criminalizava a “vadiagem”, a “capoeiragem” e o “desalinho”) até hoje, o sistema penal serve para disciplinar os corpos negros, indígenas e pobres.
- A “guerra às drogas”, iniciada nos anos 1990, herda essa função disciplinadora e excludente, criminalizando práticas culturais, modos de vida e territórios.
Assim, a análise de Moraes, embora venha da esfera institucional, confirma a crítica teórica e histórica feita pelos autores citados:
“a punição serve para organizar desigualdades, não para resolvê-las.”
Conclusão crítica
A fala do ministro Alexandre de Moraes, ao reconhecer a aplicação desigual da lei, expõe o funcionamento estrutural do sistema penal como mecanismo de perpetuação das hierarquias de classe e raça.
Esse reconhecimento, porém, precisa ultrapassar a denúncia: ele exige transformações profundas na política criminal, que não bastam enquanto a base for a criminalização da pobreza e a seletividade punitiva.
Descriminalizar o porte de drogas é um passo importante, mas repensar o papel da punição na sociedade é o verdadeiro desafio.
Referências Bibliográficas:
MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Luiz Otávio de Oliveira. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
RUSCHE, Georg. Marché du travail et régime des peines: contribution à la sociologie de la justice pénale. In: RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Peine et structure sociale: histoire et “théorie critique” du régime pénal. Paris: Éditions du Cerf, 1994. p. 99–113.
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Revan, 2004.
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