Análise crítica da cena: Chapolin Colorado e a recusa da punição pela via da fome
Análise crítica da cena: Chapolin Colorado e a recusa da punição pela via da fomePor: Gabriel Rodrigo Rocha @gabrielrochaadvogado
Descrição da sequência Na imagem, vemos o herói popular Chapolin Colorado explicar a um casal assustado que conseguiu "tirar a vontade de um homem de voltar a roubar alimentos", e quando questionado sobre como o fez, responde com desarmante simplicidade: “Dando-lhe de comer.”
A última imagem mostra o homem, de aparência empobrecida, faminto, finalmente alimentado à mesa, com satisfação e dignidade.
A punição que não acontece: rompendo a lógica tradicional
O que se subverte aqui é a lógica predominante no sistema penal capitalista, que, como demonstram Georg Rusche e Otto Kirchheimer, atua não para resolver as causas do crime, mas para reafirmar o controle sobre corpos considerados desviantes (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004).
Segundo os autores acima, o sistema penal:
- Não combate a miséria, a administra por meio da exclusão;
- Não corrige, mas elimina ou disciplina os considerados “inúteis” para o mercado;
- Não busca justiça, mas reforça a ordem social e a moralidade burguesa.
A ação de Chapolin rompe essa estrutura: ele nega a punição como resposta ao furto motivado pela fome e oferece acolhimento e cuidado.
A fome como marcador da desigualdade estrutural
Rusche, em Marché du travail, nos ensina que os crimes cometidos pela miséria (como o furto famélico) não são apenas infrações individuais, mas sintomas da organização econômica. O “mendigo” faminto, nessa cena, não é um indivíduo falho, é a expressão de uma sociedade que deixa pessoas passarem fome (RUSCHE, 1994).
A punição, nesse caso, seria não apenas ineficaz, mas injusta, pois criminalizaria a própria sobrevivência.
Chapolin reconhece isso intuitivamente, ao invés de julgar ou castigar, ele desnaturaliza a lógica da punição e propõe uma solução humanizadora e estrutural: alimentar quem tem fome.
O cárcere e a fábrica: onde esse corpo se encaixa?
Melossi e Pavarini mostraram que a prisão moderna nasce para ensinar corpos a se submeter à lógica do trabalho. Mas o personagem faminto de Chapolin não está inserido na fábrica, nem no mercado formal, ele é o “excedente”, o “sobrante”, o corpo dispensável do capitalismo periférico (MELOSSI; PAVARINI, 2010).
Segundo essa lógica, ele seria um candidato natural ao encarceramento, não por ser perigoso, mas por ser pobre.
Chapolin rompe com esse roteiro: não tenta “ressocializar” ou reintegrar à força de trabalho, mas reconhece o direito à existência, ao alimento, à dignidade.
Uma contra-pedagogia da justiça
Ao fazer isso, Chapolin propõe uma pedagogia alternativa:
- O “desvio” não se corrige com repressão,
- Mas se previne com justiça social.
A fome, aqui, não é um problema moral, mas um problema político, e a solução não é castigo, mas solidariedade e redistribuição.
Leitura crítica: o gesto que inverte a estrutura da punição
A cena sintetiza, em linguagem popular, o que autores como Angela Davis, Didier Fassin e os teóricos marxistas da penalidade argumentam em linguagem acadêmica: nem todo crime deve ser punido. Nem todo desvio exige repressão. Às vezes, basta olhar para a causa, e não para o ato, uma reflexão inspirada nas contribuições de Davis (2018), Fassin (2018), Melossi e Pavarini (2010) e Rusche e Kirchheimer (2004).
Chapolin atua como o anti-punitivista por excelência: um herói que combate o crime não com armas ou punições, mas com compaixão e raciocínio social.
Reflexão final – Entre o castigo e o cuidado: o gesto que recusa a lógica da punição
A cena de Chapolin Colorado, ainda que envolta em humor e simplicidade, nos apresenta um gesto profundamente subversivo: diante de um ato considerado criminoso, o furto de alimentos, o herói não recorre à punição, mas à partilha. Ele não aponta o dedo, não ameaça com a lei, nem convoca a autoridade; apenas alimenta quem tem fome.
Esse gesto, aparentemente banal, desmonta toda uma engrenagem de significados em torno da justiça, da criminalidade e da punição. Enquanto o sistema penal moderno se construiu sobre a ideia de que o desvio deve ser contido, corrigido ou eliminado, como demonstram Rusche, Kirchheimer, Melossi e Pavarini, Chapolin oferece uma saída que rompe com essa lógica: não punir, mas compreender a causa.
Essa recusa à punição, quando o "criminoso" é um faminto, desvela uma verdade incômoda: quantas das transgressões que criminalizamos não nascem da exclusão? Quantas vezes a resposta social ao desespero é o castigo, e não o cuidado? E mais: quem são os punidos preferenciais? Aqueles que rompem normas morais, ou aqueles que ameaçam silenciosamente a ordem econômica ao existir fora de sua lógica?
Ao alimentar o homem faminto, Chapolin quebra o ciclo punitivo, mas não apenas isso: ele desarma a função simbólica da punição, que é marcar corpos, consolidar fronteiras morais e reafirmar a ordem. Ele nos convida, sem dizer, a olhar para o entorno antes de olhar para o ato. A perguntar-se: o que levou alguém a roubar? E não: como devemos puni-lo?
Diante disso, não seria o caso de perguntar se a punição, antes de corrigir o desvio, o fabrica e o amplifica? Se, em vez de proteger, ela destrói vínculos, dissolve comunidades e perpetua desigualdades?
Talvez o que está em jogo, afinal, não seja a ausência de justiça, mas a maneira como escolhemos entendê-la.
Referência bibliográfica:
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2018.
FASSIN, Didier. Punir: uma paixão contemporânea. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2018.
MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Luiz Otávio de Oliveira. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
RUSCHE, Georg. Marché du travail et régime des peines: contribution à la sociologie de la justice pénale. In: RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Peine et structure sociale: histoire et “théorie critique” du régime pénal. Paris: Éditions du Cerf, 1994. p. 99–113.
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Revan, 2004.

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