Análise crítica: A punição como fenômeno expandido: o caso da série Adolescência (Netflix)

 

Análise crítica: A punição como fenômeno expandido: o caso da série Adolescência (Netflix)

Por: Gabriel Rodrigo Rocha @gabrielrochaadvogado


A punição além do crime

Na série Adolescência (Netflix), o episódio 4 mostra algo profundo que vai além da trama: o sofrimento de uma família inteira por um crime que ainda nem foi julgado.

E disso surge uma grande questão:

Será que é necessário um crime consumado para que a punição ocorra?

No caso de Jaime, personagem da série, a punição começa antes mesmo do julgamento oficial:

  • O pai tem sua van vandalizada, sendo punido simbolicamente por associação ao filho.
  • A irmã sofre com a instabilidade emocional e relacional provocada pela crise familiar.
  • A mãe vivencia a tensão de uma possível mudança de cidade, considerando como isso afetaria a vida da família.

Ainda que a mudança não se concretize, o simples fato de cogitar o deslocamento geográfico e social como resposta ao estigma já expressa uma antecipação dos efeitos da punição.

Essa antecipação é o que Foucault chamaria de “distribuição difusa do poder punitivo”, o castigo não é mais apenas o da sentença legal, mas uma rede de práticas sociais, afetivas e morais que produz sofrimento e exclusão mesmo antes da condenação.

A punição como mecanismo de exclusão moral e social

Segundo David Garland, vivemos hoje sob uma “cultura do controle”, na qual a punição deixou de ser um mecanismo de reabilitação e passou a funcionar como instrumento de contenção e exclusão. A suspeita já basta para colocar uma pessoa, e seu entorno, sob desconfiança social (GARLAND, 2001).

A família de Jaime, mesmo sem envolvimento direto nos fatos, passa a ser tratada como parte de um “todo problemático”. Isso ecoa o que Garland chama de política da antecipação: punir para prevenir, isolar para proteger, estigmatizar para controlar (GARLAND, 2001).

A punição como produção de sofrimento social – Fassin e Alvarez

Didier Fassin interpreta a punição como uma “paixão social” que vai além da razão: ela responde a desejos de moralização, medo e controle. Punimos, muitas vezes, para sentir que algo está sendo feito, mesmo que a punição atinja quem não cometeu nada (FASSIN, 2018).

Marcos César Alvarez, por sua vez, mostra como o sistema penal, ao invés de apenas castigar o autor do fato, atinge as redes de sociabilidade do acusado — familiares, vizinhos, comunidadede modo a reforçar a separação entre “nós” e “eles”. Nesse caso, a punição funciona como marcador simbólico de exclusão (ALVAREZ, 2006).

Interseccionalidade da dor punitiva – Davis e Alexander

Angela Davis e Michelle Alexander evidenciam que a punição está enraizada em estruturas de classe, raça e gênero. A dor da mãe de Jaime ao cogitar a mudança de cidade, o impacto na rotina da irmã, o vandalismo contra o pai — tudo isso revela os múltiplos efeitos colaterais da punição enquanto dispositivo de opressão (DAVIS, 2018; ALEXANDER, 2017).

Davis nos lembra que “a punição se tornou a forma preferencial de lidar com os problemas sociais que o Estado se recusa a enfrentar”, denunciando como a prisão substitui políticas públicas e atua como solução fácil — e violenta — para lidar com desigualdades (DAVIS, 2018).

Reflexão final – A punição que transborda: família, antecipação e sofrimento coletivo em Adolescência

O quarto episódio da série Adolescência, ao retratar os efeitos colaterais do processo penal sobre a família de Jaime, nos confronta com uma dimensão da punição que raramente é percebida de forma consciente: a sua capacidade de ultrapassar fronteiras jurídicas, temporais e individuais, contaminando aqueles que sequer cometeram um crime, mas que, por laço de sangue, convívio ou afeto, tornam-se também punidos por associação.

O pai, com a van pichada, sofre a deslegitimação pública de seu ofício. A mãe, envolta na angústia de uma possível mudança de cidade, carrega a dor antecipada do exílio social. A irmã, inquieta, sente a instabilidade e a desestruturação familiar. Nenhum deles foi acusado. Nenhum deles está sendo julgado. Mas todos estão sendo atingidos pelo poder moralizante e disciplinador do sistema penal, mesmo antes do julgamento começar.

Essa experiência de sofrimento coletivo não é exceção: ela é a regra não dita. Como nos alerta Didier Fassin, a punição é uma paixão social, vivida e reproduzida não só pelo Estado, mas por vizinhos, escolas, empresas, amigos, imprensa e redes sociais. Ela é simbolicamente distribuída não apenas para restaurar a ordem, mas para reafirmar quem merece estar dentro da comunidade moral, e quem deve ser expulso dela (FASSIN, 2018).

Angela Davis e Michelle Alexander também nos mostram que esse transbordamento da punição é estrutural: ele atinge, prioritariamente, as famílias negras, pobres, racializadas e periféricas, cujos membros, mesmo sem ficha criminal, carregam a marca simbólica da suspeição e da exclusão (DAVIS, 2018; ALEXANDER, 2017).

Adolescência nos obriga a olhar para essas famílias não como “vítimas colaterais”, mas como partes centrais de um sistema que opera pelo medo, pela humilhação e pela destruição dos vínculos comunitários. O sofrimento dessas pessoas não é um efeito imprevisto do sistema, mas uma das formas pelas quais ele produz obediência e conformidade social.

Garland já nos advertia: o sistema de punição não existe apenas para responder ao crime. Ele existe para reproduzir uma ordem, e se essa ordem exige sacrificar famílias, isolá-las e degradá-las antes mesmo do veredito, então isso não é falha. É projeto, uma leitura crítica inspirada em suas análises sobre a racionalidade do controle penal (GARLAND, 2001).

Nesse contexto, talvez a pergunta mais urgente não seja sobre o que fazer com os culpados, mas por que um sistema que se diz justo precisa destruir lares inteiros, anular futuros e punir corpos e territórios inteiros antes mesmo que qualquer culpa seja provada. O que revela uma justiça que antecede o julgamento, que se alimenta da exposição pública e que escolhe seus alvos não pelos atos, mas pelas condições sociais de origem?”


Referências bibliográficas

ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2017.
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2018.
FASSIN, Didier. Punir: uma paixão contemporânea. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2018.
GARLAND, David. The culture of control: crime and social order in contemporary society. Chicago: University of Chicago Press, 2001.

Comentários

  1. Adorei o texto, Gabriel, é interessante pensar que no "neoliberalismo" o Estado não se retrai como em teoria, mas sim se reorganiza, reforçando o estado penal em detrimento do social. Como Wacquant observou, a punição passa a ser um "instrumento de gestão da população marginalizada".

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