Análise Crítica: Quando a Negação de Direitos se Transforma em Punição

 


Análise Crítica: Quando a Negação de Direitos se Transforma em Punição

Por: Gabriel Rodrigo Rocha @gabrielrochaadvogado


A charge apresenta, em sequência visual simples e impactante, a lógica perversa do sistema socioeconômico e punitivo contemporâneo: primeiro se nega o acesso a direitos fundamentais, como seguridade social, educação pública de qualidade e trabalho digno. Em seguida, quando surge a violência, representada pela figura do jovem armado, o mesmo sujeito que negou os direitos se faz de inocente: “Oh, não! Como chegamos a isto?”.


Trata-se de uma denúncia explícita à hipocrisia das elites e da gestão estatal neoliberal, que "desinvestem" em políticas sociais estruturantes e depois exigem respostas penais violentas e seletivas para controlar os efeitos sociais da desigualdade.


Essa leitura está profundamente conectada às discussões presentes nas obras de autores que tratam sobre sociologia da punição, especialmente no que diz respeito ao papel da punição na manutenção da ordem social e econômica.


Punição como fenômeno expandido

Segundo David Garland, vivemos sob uma cultura do controle que naturaliza o encarceramento e a repressão como respostas legítimas à desordem, ignorando as causas estruturais da violência (GARLAND, 2001). A imagem ironiza essa cultura: o sujeito que nega direitos é o mesmo que exige segurança, como se a violência surgisse do nada, sem relação com a exclusão social.


Didier Fassin, por sua vez, nos lembra que a punição é uma paixão social, um desejo coletivo de moralização e repressão, ainda que irracional e injusto (FASSIN, 2018). A imagem encarna essa paixão: a sociedade escolhe punir em vez de reparar.


Punição, classe e economia

Georg Rusche e Otto Kirchheimer afirmam que o sistema penal é sensível à estrutura econômica, e que a forma da pena varia conforme a utilidade do corpo punido para o capital (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004). Quando o trabalho é escasso e os direitos são negados, a pena se torna mais dura. A figura do jovem armado na imagem representa exatamente isso: o corpo excedente, descartável, que a sociedade não integrou pela educação ou trabalho, mas que agora se torna objeto de medo e punição.


Melossi e Pavarini reforçam que o cárcere moderno nasceu para disciplinar corpos para o trabalho, e para eliminar os inassimiláveis (MELOSSI; PAVARINI, 2010). Negar trabalho digno, como na terceira cena da imagem, é parte do mesmo processo que depois legitima a punição.


Foucault e a racionalidade da punição

Michel Foucault ensina que a prisão moderna não serve para reabilitar, mas para governar corpos desviantes, fabricando a delinquência como categoria política (FOUCAULT, 2015). O jovem da imagem não é um “monstro social”, mas o produto de uma cadeia de negações e exclusões. A punição, aqui, aparece como o último ato de uma peça escrita pela desigualdade.


A última fala da charge, “Oh, não! Como chegamos a isto?”, é o ápice da negação da responsabilidade estrutural. Ela ecoa a crítica foucaultiana à falsa neutralidade do sistema penal, que finge aplicar justiça a todos igualmente, mas que, na prática, atua seletivamente contra os pobres, negros, periféricos e despossuídos de direitos.


Conclusão crítica

A imagem é uma síntese popular daquilo que a sociologia crítica da punição vem denunciando há décadas: a punição não é apenas resposta ao crime, ela é resposta à exclusão, à pobreza, ao fracasso deliberado das políticas sociais.


O verdadeiro escândalo não é a violência na periferia, mas o fato de que a mesma sociedade que nega comida, educação e emprego aos jovens pobres é a que exige punição quando esses jovens se rebelam, se armam ou se desviam.


A charge nos desafia a inverter a lógica: em vez de perguntar por que há crime, devemos perguntar por que há tanta recusa em garantir direitos básicos. E talvez, como Foucault sugeria, devêssemos parar de pensar em como punir melhor, e começar a imaginar como seria uma sociedade em que a punição não fosse necessária para garantir a ordem.


Referências Bibliográficas

ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. Tradução de Jessé Souza. São Paulo: Boitempo, 2017.

DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Boitempo, 2018.

FASSIN, Didier. Punir: uma paixão contemporânea. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2018.

FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva: curso no Collège de France (1972–1973). Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015.

GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução de Ana Paula Sampaio Caldas. São Paulo: Revan, 2008.

MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI–XIX). Tradução de Luiz Otávio de Oliveira. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Revan, 2004.







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